por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
Washington sobe a aposta e a ditadura da energia ameaça o mundo.
O historiador Roger Harris, ex-assessor de Lyndon Johnson e Richard Nixon, ao ouvir o discurso com o qual Bush júnior pediu mais tropas e recursos para o Iraque para “romper o ciclo de violência”, “evitar o colapso”, possibilitar que o governo de Bagdá assuma a responsabilidade pela luta e evitar uma derrota desonrosa, lembrou-se de 1969. Depois de ver Nixon ser eleito com o slogan “Tenho um plano para terminar a Guerra do Vietnã”, Harris ouviu o assessor-chefe, Henry Kissinger, dizer, na Casa Branca: “Não posso acreditar que uma potência de quarta categoria como o Vietnã do Norte não tenha um ponto de ruptura”. Em vez do fim da guerra, Nixon passou a falar de “paz com honra” e “vietnamização”. O número de tropas do Pentágono começou a diminuir, mas a violência e a abrangência do conflito aumentaram ainda mais. Morreram tantos soldados dos EUA da posse de Nixon, em 1969, até a retirada se completar, no início de 1973, quanto desde o início do envolvimento direto, em março de 1965 – cerca de 29 mil em cada período. Em 1970, com a invasão do Camboja, Harris pediu demissão. Ainda viria o bombardeio massivo do Vietnã do Norte em 1972. Mais outros milhões de vietnamitas, laocianos e cambojanos foram mortos – e o resultado foi tornar ainda mais grave a derrota de Washington, que perdeu não só o Vietnã, como toda a Indochina.
Mas o Iraque nem sequer chegou a esse estágio: a Casa Branca ainda quer “incremento” (surge) do compromisso, enquanto evita o quase-sinônimo “escalada” (escalation), associado ao fiasco do Vietnã dos anos 60. O governo títere de Bagdá em 2007 é muito mais frágil e menos capaz e confiável que o de Saigon em 1969. Em 11 de janeiro, a secretária de Estado, Condoleezza Rice, disse ao Senado que Al-Maliki vive de “tempo emprestado”.
Segundo o correspondente britânico Patrick Cockburn, do The Independent, os xiitas receiam que os EUA estejam prestes a impor a Bagdá um governo mais preparado para executar suas instruções – como fizeram os EUA ao instigar os militares sul-vietnamitas a depor Ngo Dinh Diem e substituí-lo por Nguyen Van Thieu.
Bush júnior pediu 21,5 mil soldados para tentar aumentar o controle sobre a região da capital. Ali, quem mais tem a perder são as milícias xiitas, aliadas tácitas do primeiro-ministro Nuri Al-Maliki. Como a milícia Mehdi, senhora dos 2,5 milhões de habitantes de Cidade Sadr e liderada por Muktada Al-Sadr, ao qual guardas do governo deram vivas enquanto enforcavam Saddam Hussein. Trata-se, ao que parece, de evitar que o Iraque seja dominado pelos xiitas e, por tabela, pelo Irã – mesmo à custa de enfraquecer o único governo que pôde criar depois de eliminar Saddam.
Além de reforçar as tropas de terra no Iraque, a Casa Branca demitiu do Comando Central do Pentágono no Oriente Médio (CentCom) o general libanês-americano John Abizaid, que esteve no Líbano, conhece a realidade árabe, propôs negociações com Síria e Irã e se opôs ao envio de mais tropas. Substituiu-o pelo ex-aviador naval e almirante William Fallon, especialista em operações aeronavais. Ao mesmo tempo, o novo secretário da Defesa, Robert Gates, decidiu dobrar o poderio naval estadunidense no Golfo Pérsico e enviar um segundo porta-aviões, a encabeçar um segundo grupo de batalha naval.
Trata-se, é óbvio, de uma tentativa de, no mínimo, intimidar o Irã. Mas seu efeito mais previsível será fortalecer os mais radicais em Teerã, já provocados pela captura de cinco supostos diplomatas iranianos e seus equipamentos em um escritório em Irbil, no Curdistão iraquiano, acusados de fornecer armamentos e treinamento aos inimigos de Washington.
Mesmo que os EUA tivessem força para neutralizar as vingativas milícias xiitas – mais numerosas que a resistência sunita –, não encontrariam mais ninguém em condições de obter uma maioria eleitoral e organizar um governo, mesmo de fachada, no Iraque. O fracasso é previsível, diz Cockburn, mas isso não significa que Washington não tentará.
Para Michael Klare, correspondente da revista estadunidense The Nation e professor de estudos de paz e segurança mundial no consórcio Five Colleges, de Massachusetts, o problema vai muito além do controle de Bagdá. Sua tese é que as questões internacionais das próximas décadas serão dominadas pelo deslocamento das principais fontes de energia do “Norte” para o “Sul” e pela luta global por recursos energéticos cada vez mais escassos, com o risco daquilo que chama de “energo-fascismo” – uma tendência a ampliar o controle sobre cada aspecto da produção, aquisição, transporte e alocação da energia e torná-la um instrumento de poder autoritário.
Talvez tenha se esquecido de considerar a possibilidade de um “energo-socialismo” – o uso da mesma ferramenta pela justiça social e pela emancipação do Sul. De qualquer forma, no mundo em geral, como no Iraque e no Irã, em particular, a meta seria controlar a qualquer custo o acesso às reservas de petróleo e a seus possíveis substitutos, como a hidreletricidade e a energia nuclear. O mundo estaria se dividindo entre países deficitários e superavitários em energia.
Vladimir Putin levou à prisão o bilionário Mikhail Khodorkovsky, que pretendia escapar do controle de Moscou e explorar o petróleo russo em parceria com a Exxon Mobil e transferiu a maior parte de suas reservas à estatal Rosneft, além de bloquear as tentativas de construção de gasodutos e oleodutos privados. Desde então, colocou-se em condições de pressionar a Europa e intimidar vizinhos mais dependentes – Ucrânia, Lituânia, Geórgia, Bielo-Rússia – com a ameaça de aumentar preços ou fechar as válvulas, como se viu várias vezes em 2006.
A Rússia, ex-superpotência militar, começa a tornar-se uma superpotência energética, graças ao controle de vastas reservas de gás, petróleo, carvão e urânio, além dos oleodutos que conduzem petróleo dos vizinhos do Cáspio – cujos líderes, como o presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, jogam com as grandes potências e se deixam cortejar por Washington e Pequim.
Em escala um pouco menor, o governo da Venezuela retoma o controle sobre os campos de petróleo concedidos a multinacionais e exige das que continuam no país que se submetam à sua política de comércio exterior e contenham a produção. Sem disparar um só tiro, alterou drasticamente o cenário político e estratégico da América Latina.
Tirou Cuba da estagnação econômica, elegeu aliados na Bolívia, no Equador e na Nicarágua e financia programas sociais e projetos de infra-estrutura que popularizam Hugo Chávez e sua concepção de socialismo nas três Américas. Isto inclui cirurgias de catarata do Peru a Pernambuco, desfiles de escolas de samba no Rio, máquinas agrícolas e hidrelétricas na Nicarágua, petróleo para os pequenos países do Caribe, petroquímicas na Bolívia, operação de fábricas falidas e ocupadas por operários em Santa Catarina (Cipla e Interfibra) e São Paulo (Flaskô) e até a venda de óleo combustível subsidiado a estadunidenses pobres para ajudá-los a enfrentar o inverno.
É mais que compreensível que outros países pobres se apressem a tomar o controle de seus recursos energéticos, ainda que menos abundantes. Nos últimos meses, viram-se a Bolívia renacionalizar seu setor de gás e petróleo e o Equador expropriar a Occidental Petroleum, aliar-se a Chávez e, junto com Angola, filiar-se à Opep. Viu-se, pela primeira vez na história do Paraguai, um candidato de esquerda – o ex-bispo Fernando Lugo – largar como favorito na campanha para as eleições presidenciais de maio de 2008, contra 60 anos de poder do Partido Colorado, tendo como bandeira a revisão do controle das hidrelétricas de Itaipu e Yacyretá e das condições de exportação de energia para o Brasil e a Argentina.
Mais importante e perigosa, porém, é a transformação do Pentágono (que, sozinho, consome tanto petróleo quanto a Suécia) em um serviço global de proteção às fontes ultramarinas de petróleo e gás dos EUA. Desde o início da guerra no Iraque, mais de um quarto dos gastos militares dos EUA são destinados apenas a essa tarefa. O processo começou em 1980 com a definição, por Jimmy Carter, do Golfo Pérsico como “interesse vital” dos EUA e a criação de uma Força-tarefa Conjunta de Deslocamento Rápido, transformada no CentCom por Ronald Reagan, em 1983.
Trata-se de uma política bipartidária, ampliada por Clinton em 1990 com a extensão do “interesse vital” e da “jurisdição” do CentCom ao Cáspio e às repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central. Em 2000, The Geopolitics of Energy, estudo bipartidário do Centro para Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS), recomendou que todas as regiões petrolíferas importantes em países periféricos ficassem sob a “proteção” militar do Pentágono. A Nigéria, quinta maior fonte de petróleo dos EUA, começa a tornar-se outra grande preocupação.
Trata-se tanto de garantir o abastecimento de energia quanto de evitar que caia nas mãos de inimigos e colocá-lo nas mãos dos amigos. Como disse Bush júnior em agosto de 2006, “um fracasso no Iraque daria aos terroristas e extremistas outra ferramenta além de um abrigo seguro, ou seja, a receita da venda de petróleo”. Esta continua sendo a preocupação central: apesar do caos em Bagdá, o projeto de lei para leiloar os campos iraquianos às transnacionais anglo-americanas, prometido desde os primeiros meses da ocupação, foi rascunhado pela consultoria BearingPoint e deverá ser em breve remetido ao Parlamento iraquiano. Prevê concessões por 30 anos, em um regime de produção partilhada, análogo ao hoje vigente na Bolívia.
Se o petróleo já é razão de tanta ansiedade e mobilização, mais ainda seu substituto mais importante e estratégico, a energia nuclear – que aparece, além disso, como a alternativa mais compatível com o combate ao aquecimento global, ao menos entre as imediatamente disponíveis em escala global. Cada unidade de enriquecimento de urânio, reator nuclear e depósito de lixo radioativo, cada conexão entre esses pontos é um arsenal em potencial para terroristas, traficantes e governos hostis.
Quanto mais reatores houver, maior terá de ser o controle e mais funcionários, empreiteiras e prestadores de serviços, com suas famílias e contatos, terão de ser checados e mantidos sob vigilância pelas agências de segurança nacional dos EUA dentro do país ou por agências internacionais no exterior.
Cada vez é maior a tentação de intervir em países não “confiáveis” com tais recursos, ainda que o resultado provável seja torná-los ainda menos confiáveis. Por outro lado, maiores os ganhos potenciais dos países periféricos que conseguirem assumir o controle de seus recursos energéticos e coordenarem suas ações – como Teerã a enviar o presidente Mahmoud Ahmadinejad à Venezuela, ao Equador e à Nicarágua. Ainda estamos muito longe do Império dominado pelas tecnologias da informação e bioengenharia previsto por Michael Hardt e Toni Negri. Pelas próximas décadas, o trono ainda será de Sua Majestade Imperial, o barril de petróleo.